Se perguntásseis hoje diante de dez pessoas quem é André Sauvain, nove delas achariam ridícula a vossa ignorância, e a décima não hesitaria em soltar uma gargalhada. A ninguém é permitido desconhecer uma gloria nacional: entretanto ninguém conhecia há sete anos aquele nome, tão celebre agora. Nessa época, ainda André Sauvain não era um pintor ilustre. Ocupava, ao cimo da rua dos Mártires, um rez-de-chaussée, tão próprio pela humidade a criar cogumelos, como pela escuridão a inspirar tragédias. A habitação do jovem pintor limitava-se a uma só casa, que acumulava as funções de sala, quarto de cama, atelier e refeitório. E nem por isso ele passava pior do que se residisse em sumptuoso palácio. André era um rapaz vigoroso, com músculos de{6} aço, esbelto como um vime e magro como um gato em Abril. O seu porte altivo, bigode castanho e retorcido, pêra aguçada, cabelo alourado e abundantíssimo, assemelhavam-no a alguns retratos de Van-Dyck por forma, que não causaria estranheza ver pender-lhe ao lado uma espada. E com efeito a blusa rafada, que trajava, ia tão bem à sua figura nobre e elegante, como um gibão do melhor veludo. Numa bela e clara manhã de Dezembro André Sauvain acabava de retocar um Faust au sabbat: recuando um pouco para melhor avaliar o efeito do seu quadro, e erguendo por acaso os olhos, foi testemunha de um prodígio. Através das vidraças do seu quarto descobria-se parte de uma casa esplendidamente iluminada pelos raios do sol. Aquele prédio era o constante pesadelo do pintor. Segundo os caprichos da atmosfera, ora reflectia execrável claridade no atelier, ora lhe interceptava completamente a luz. André lançava-lhe pela milésima vez a sua maldição, quando de repente viu abrir-se uma janela, e aos ouvidos do mancebo chegaram as últimas notas de uma cançoneta entoada por voz fresca e harmoniosa: não tardou que a essa janela se mostrasse uma cabeça de mulher, inclinando-se para fora. Aquela cabeça arrancou ao pintor um grito de admiração e, bem que nunca a tivesse visto, reconheceu-a imediatamente.{7} Há no Louvre uma miniatura de Fragonard, do tamanho de uma peça de 40 francos, que é a imagem de uma menina de quinze anos, rosada, loura, com a risonha expansão da inocência a iluminar-lhe o rosto. A boca é uma cereja: deseja-se colhe-la com os lábios. A brisa de maio brinca travessa com os bastos anéis dos seus cabelos doirados. Nos seus olhos negros, de extraordinária viveza, crepita a jovialidade. É a primavera, é a alegria, é a mocidade em flor. Pois, embora o não creiam, esse rosto encantador, emoldurado pela janela que se abrira fronteira ao atelier de Sauvain, era o original daquela miniatura, feita havia mais de cem anos
Se perguntásseis hoje diante de dez pessoas quem é André Sauvain, nove delas achariam ridícula a vossa ignorância, e a décima não hesitaria em soltar uma gargalhada. A ninguém é permitido desconhecer uma gloria nacional: entretanto ninguém conhecia há sete anos aquele nome, tão celebre agora. Nessa época, ainda André Sauvain não era um pintor ilustre. Ocupava, ao cimo da rua dos Mártires, um rez-de-chaussée, tão próprio pela humidade a criar cogumelos, como pela escuridão a inspirar tragédias. A habitação do jovem pintor limitava-se a uma só casa, que acumulava as funções de sala, quarto de cama, atelier e refeitório. E nem por isso ele passava pior do que se residisse em sumptuoso palácio. André era um rapaz vigoroso, com músculos de{6} aço, esbelto como um vime e magro como um gato em Abril. O seu porte altivo, bigode castanho e retorcido, pêra aguçada, cabelo alourado e abundantíssimo, assemelhavam-no a alguns retratos de Van-Dyck por forma, que não causaria estranheza ver pender-lhe ao lado uma espada. E com efeito a blusa rafada, que trajava, ia tão bem à sua figura nobre e elegante, como um gibão do melhor veludo. Numa bela e clara manhã de Dezembro André Sauvain acabava de retocar um Faust au sabbat: recuando um pouco para melhor avaliar o efeito do seu quadro, e erguendo por acaso os olhos, foi testemunha de um prodígio. Através das vidraças do seu quarto descobria-se parte de uma casa esplendidamente iluminada pelos raios do sol. Aquele prédio era o constante pesadelo do pintor. Segundo os caprichos da atmosfera, ora reflectia execrável claridade no atelier, ora lhe interceptava completamente a luz. André lançava-lhe pela milésima vez a sua maldição, quando de repente viu abrir-se uma janela, e aos ouvidos do mancebo chegaram as últimas notas de uma cançoneta entoada por voz fresca e harmoniosa: não tardou que a essa janela se mostrasse uma cabeça de mulher, inclinando-se para fora. Aquela cabeça arrancou ao pintor um grito de admiração e, bem que nunca a tivesse visto, reconheceu-a imediatamente.{7} Há no Louvre uma miniatura de Fragonard, do tamanho de uma peça de 40 francos, que é a imagem de uma menina de quinze anos, rosada, loura, com a risonha expansão da inocência a iluminar-lhe o rosto. A boca é uma cereja: deseja-se colhe-la com os lábios. A brisa de maio brinca travessa com os bastos anéis dos seus cabelos doirados. Nos seus olhos negros, de extraordinária viveza, crepita a jovialidade. É a primavera, é a alegria, é a mocidade em flor. Pois, embora o não creiam, esse rosto encantador, emoldurado pela janela que se abrira fronteira ao atelier de Sauvain, era o original daquela miniatura, feita havia mais de cem anos